Oe, o copiador

     

                                                        Kenzaburo Oe | Jeremie Souteyrat

 

É fim de tarde do dia 01 de maio de 2021, um sábado, e chove muito em minha cidade natal, os canais transbordam com a cheia das marés, os pássaros começam a cantar na chácara vizinha, estão anunciando a noite que se avizinha. Logo um novo dia chegará. Novos dias, velhas notícias. Os palacianos seguem se alimentando dos cadáveres da peste. É difícil manter a motivação, é difícil escrever. Esbocei recentemente um texto acerca dos campos de concentração e dos extermínios perpetrados pelas metrópoles europeias na África colonial. Diferentes genocídios convergem, embaciam e contraem minha cabeça. Desolador. Em busca de consolo faço um intervalo para folhear novas brochuras, pois a beleza conforta. O hábito de ler felizmente segue me acompanhando.  

 

A última dessas brochuras que acabei de ler é o mais recente romance de Kenzaburo Oe lançado no Brasil: Morte na Água (Cia das Letras, 2021). Tão logo soube da publicação eu corri para comprá-lo, pois Oe é autor de uma obra-prima inigualável, O grito silencioso (Editora Francisco Alves, 1983). Romance que pode, tranquilamente, ocupar a primeira prateleira da ficção do século XX. 

 

No entanto, seu gênio é um tanto irregular. Nem só de obras-primas vivem os mestres. Além de O grito silencioso, outros dois livros haviam sido vertidos para o português anteriormente: Uma questão pessoal (Cia das Letras, 2003) e Jovens de Um novo tempo, despertai! (Cia das Letras, 2006). Do primeiro pode-se dizer que é um ótimo livro, equilibrado, comovente e sincero. Já do segundo livro... Bem, considerei o resultado simplesmente medíocre. Claro, há sempre a possibilidade de eu não ter alcançado o conceito que a obra pretendia.

 

O curioso em Oe é que, apesar dessa “irregularidade” (e qual autor escreveu somente obras-primas?!) seus livros possuem, quase que invariavelmente, elementos comuns. Todos eles. A identificação do protagonista com o próprio autor; a existência de um filho portador de algum tipo de deficiência; o uso reiterado de temas da história do Japão moderno; a temática campesina, aldeias que funcionam como microcosmo do país e, também, da humanidade como um todo, etc. 

 

Bons autores cometem autoplágio. É normal. Aliás, os mais badalados do ponto de vista comercial não raramente são autoplagiadores. Mia Couto é um exemplo; Haruki Murakami é outro. A originalidade é esquecida em nome da fórmula de sucesso, da vendagem. Obviamente isso não anula o fato de que Couto possui bons contos e Murakami ótimos romances. Todavia, Oe é diferente. Ele consegue, de algum modo mágico, se valer dos mesmos artifícios e dos mesmos temas de forma original. É de fato surpreendente. Sabemos o que nos espera, mas não exatamente como esses elementos estarão dispostos. 

 

Ao iniciar o livro já antevi os motivos norteadores: intrigas aldeãs, uma criança com retardo mental, um escritor de meia-idade, etc, etc. O de sempre, standart Oe. Ao correr da leitura me surpreendi justamente com a disposição e relevo dos tópicos já conhecidos. Diferentemente das outras obras, nesta Oe mergulha de cabeça na história do Japão, conseguindo articular num coro polifônico coeso o fim da Era Meiji, a Segunda Guerra e os dias correntes. Tudo isso com alusões às feridas da história nacional: Manchúria, o ultra-nacionalismo de inclinação fascista de algumas tendências políticas contemporâneas, etc. O esforço de Oe é o de superar essas feridas por meio da exposição. Lembrar daquilo que a conveniência política quer esquecer.

 

01 de maio é o dia do trabalho no Brasil. Alguns animais se aproveitaram disso para fazer uma manifestação na rua em apoio aos palacianos. Reivindicam mais cadáveres, aparentemente 400.000 é um número muito pequeno ainda. O barulho que eles fizeram com suas buzinas, megafones e caixas de som atrapalharam o término da minha leitura. Só os espíritos introspectivos sabem o valor que as últimas páginas de um romance têm. Do mesmo modo, seus barridos agudizaram a enxaqueca que me acometia desde a manhã.

 

Eles só estão dispostos a externar suas posições porque nunca nos acertamos com nossa história. Nunca punimos assassinos anteriores, e seguiremos sem punir os próximos. A esses animais eu desejo o mesmo fim do personagem governista de Morte na Água, ainda que aparentemente ninguém esteja disposto a fazer este nobre serviço.

 


 

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